Nos últimos tempos, as chamadas bonecas reborn, réplicas altamente realistas de bebês recém-nascidos, têm despertado curiosidade e, mais recentemente, perplexidade no meio jurídico. Criadas com detalhes minuciosos que simulam peso, textura da pele e até respiração, essas peças vêm ganhando espaço não apenas como itens colecionáveis, mas como objetos de vínculo afetivo profundo.
O problema começa quando esse vínculo ultrapassa os limites do emocional e tenta alcançar o sistema de justiça.
O que diz o Direito?
De acordo com o Código Civil brasileiro, artigo 82, bonecas reborns são, do ponto de vista legal, bens móveis. São objetos que, embora possam carregar valor afetivo para seus proprietários, não possuem personalidade jurídica, tampouco capacidade de ser sujeito de direitos e obrigações.
Portanto, ações judiciais que atribuem a esses objetos status equivalente ao de uma criança real, como pedidos de guarda ou alimentos, não encontram respaldo legal e devem ser rejeitadas liminarmente por absoluta impropriedade jurídica.
Um caso ilustrativo ocorreu em Goiânia, quando um casal, após o fim da relação, buscou orientação jurídica para disputar a posse de uma boneca reborn. A história veio a público após a advogada Suzana Ferreira relatar nas redes sociais que foi procurada por uma das partes, mas recusou o patrocínio da causa por considerá-la manifestamente infundada.
Reflexão no meio jurídico
O tema ganhou tanta repercussão que chegou, em maio deste ano, à prova oral do concurso para delegado de polícia de São Paulo, ocasião em que um dos examinadores questionou se seria juridicamente possível reconhecer a dignidade da pessoa humana a um bebê reborn. A arguição evidenciou a importância de o candidato conhecer os contornos conceituais de institutos como personalidade jurídica, direitos da personalidade e o princípio da dignidade humana.
A pergunta, embora inusitada, reflete um movimento crescente de judicialização de vínculos simbólicos, o que exige do operador do direito a habilidade de distinguir entre o que pode ser acolhido juridicamente e o que deve ser tratado por outras vias — como a saúde mental, por exemplo.
O Legislativo também reagiu
O fenômeno também provocou reações no campo político. Em Minas Gerais, o deputado estadual Cristiano Caporezzo (PL) propôs a proibição de simulações de atendimento médico com bonecas reborns em unidades hospitalares. A medida busca evitar o uso indevido dos serviços públicos de saúde.
Já no Congresso Nacional, o deputado Zacharias Calil (União Brasil-GO) apresentou um projeto de lei para enquadrar como infração administrativa o uso de bonecos que simulem crianças com a intenção de obter vantagens indevidas, como assentos preferenciais ou benefícios assistenciais.
Por outro lado, a deputada federal Rosângela Moro (União Brasil-SP) propôs uma abordagem mais acolhedora: a criação de um programa de atendimento psicossocial pelo SUS para pessoas que desenvolvam apego emocional a objetos de representação humana. A proposta reconhece que, em alguns casos, o vínculo com bonecas reborns pode estar ligado a lutos não elaborados ou distúrbios afetivos.
O papel da advocacia
Diante dessas distorções de realidade, é inevitável questionar a responsabilidade ética do profissional da advocacia. Afinal, quem elabora e assina petições requerendo alimentos ou visitas para um objeto inanimado?
O Código de Ética e Disciplina da OAB é claro ao determinar que o advogado deve recusar causas sabidamente infundadas ou temerárias. A atuação do profissional do direito não pode ser instrumento de legitimação de fantasias, tampouco meio para promover narrativas sensacionalistas em redes sociais.
Quando o Judiciário se torna palco para pedidos absurdos e o advogado atua como protagonista dessa distorção, há evidente risco de banalização da jurisdição. É dever da advocacia preservar a seriedade do processo judicial e atuar com responsabilidade técnica e ética, especialmente diante de demandas que não possuem respaldo legal nem razoabilidade.
Conclusão
Bonecas reborns podem cumprir funções emocionais importantes, como ajudar no luto, aliviar traumas ou oferecer companhia. No entanto, é preciso compreender que, juridicamente, elas permanecem sendo coisas, e não sujeitos de direito. Tentar enquadrá-las no regime jurídico das relações humanas compromete a lógica do ordenamento e desvirtua o papel da Justiça.
Cabe aos operadores do Direito sejam eles juízes, advogados ou promotores manter o equilíbrio entre empatia e técnica. Nem toda dor deve ser judicializada, e nem todo afeto pode ser traduzido em ação judicial. A sensibilidade do Direito está em reconhecer os limites da sua atuação e respeitá-los.